O sol já começava a se por a oeste, deixando um rastro vermelho no céu, enquanto a lua subia a leste para iluminar a terra durante o seu turno. O relógio da torre da igreja de Santa Tereza começou a tocar. Seis vezes o sino badalou até descansar, esperando até que a próxima hora chegasse. Já fazia 20 anos desde que o sino anunciava as horas, desde a construção da pequena capela.
Antônio tirou um maço de cigarros de dentro da gaveta da sua escrivaninha e, com um isqueiro retirado do bolso direito da calça, acendeu-o. Tragou a fumaça, apreciando o seu sabor doce. Fumar era um hábito ruim, na verdade péssimo, ele como médico sabia. Mas já se tornara um dependente desde muitas décadas e, mesmo sendo psiquiatra, não conseguia curar-se.
Era um homem na casa dos cinquenta, com o cabelo rareando na sua fronte. O que sobrava já havia embranquecido há muito, tanto por causa da idade quanto pelas preocupações que a profissão lhe trazia. A pele dos olhos era funda, formando duas grandes olheiras permanentes, como se aquele homem nunca dormisse. Mas os olhos eram os mais intrigantes. Eram muito escuros, quase negros, recobertos por sobrancelhas grossas que davam um ar de sabedoria. Ao olhar para aqueles olhos, era impossível mentir. Muitos o consideravam o homem mais inteligente da cidade e o respeitavam muito.
Seu consultório ficava em um pequeno prédio em uma rua afastada da cidade. Um dos poucos prédios em todo o pequeno município, na verdade. “A melhor localização da cidade”, como ele dizia. “Pelo menos para um hospício”. A recepção era pequena, onde uma jovem atendente se divertia jogando paciência no computador. Havia algumas “celas” especiais para internação, no total de 10, estando apenas 5 cheias. Seu consultório era também pequeno, onde figuravam alguns livros de Freud em uma estante ao canto. Próximo à estante ficava o divã juntamente com a sua cadeira. Do outro lado havia uma escrivaninha, onde ele guardava os cigarros, e onde ele atendia as pessoas.
Ele pensava em todo o trabalho que tivera no dia. Um louco do corredor 3 havia tentado mata-lo pela quarta vez nessa semana, mas dessa vez de uma maneira um tanto quanto inusitada. Ele apontava para o doutor e corria ao seu redor gritando blasfêmias e “feitiços” com sua língua enrolada. Tão logo a baderna começou, os seguranças chegaram e colocaram a camisa-de-força no paciente, livrando o doutor do encantamento mortal. Mas, no fundo, Antônio sabia que era muito difícil o maluco conseguir realizar o seu intento e ria sozinho quando se lembrava do incidente.
Fora isso, o dia correra tranquilamente. Alguns fazendeiros da cidade, velhos e gordos, vinham buscando alivio para suas vidas, alguns desconfiados que a família os quisesse mortos, outros querendo suicidar-se. Havia também alguns jovens. O que mais lhe chamou atenção foi um garoto de no máximo 16 anos, com uma grande franja cobrindo os olhos, que chegou ao consultório com ataduras cobrindo os pulsos recém-cortados. O garoto dizia que queria suicidar-se por sentir incompreendido e dizia que odiava o mundo inteiro, até mesmo Antônio, por que estavam taxando-o de louco.
Ele apagou o cigarro no cinzeiro e puxou alguns papéis da gaveta. Havia ali os prontuários de alguns pacientes que ele pôs-se a ler. Dentro de uma hora ele deveria ir para casa, onde o seu filho esperava-o para que ele o levasse ao parque que chegara à cidade. O próprio Antônio não queria ir, mas como sabia que naquela pequena cidade o garoto não teria muita opção de diversão, ele o levaria. “Maldita a hora em que sai da capital e vim para esse fim de mundo” – pensava consigo. Ao mesmo tempo, lembrava-se que ali ele ganhava quase o dobro do dinheiro que antes. Acabou rindo sozinho novamente.
Toc toc.
Alguém batia na porta.
- Pode entrar.
Um jovem louro adentrou a sala. Aparentava ser mais jovem que Antônio, porém seu semblante parecia ter envelhecido rapidamente. Os cabelos estavam desgrenhados, como se alguém estivesse passando a mão constantemente neles; os olhos apresentavam dois grandes halos roxos e profundos, dando a impressão de várias noites mal dormidas. A camisa estava desabotoada até o nível o esterno e a gravata totalmente folgado no pescoço. Havia um pequeno tique na sua sobrancelha esquerda, que tremia constantemente. O homem parecia mais um dos pacientes do doutor, um simples maluco em busca de ajuda.
- Carlos, meu amigo, o que aconteceu com você?
Antônio parecia assustado ao ver o colega naquela situação. Carlos era um dos psiquiatras que trabalhavam naquele pequeno sanatório. E um dos melhores, como Antônio gostava de falar. Era jovem, por volta dos 30 anos, idade que o outro já ultrapassara há algum tempo. Agora parecia ter, pelo menos, envelhecido uns 10 anos. Aquilo preocupava o amigo.
Carlos nada disse. Apenas pôs-se a encarar o outro. Seu olhar estava completamente fixo no doutor e apenas os movimentos aleatórios de sobressalto da sua sobrancelha indicavam que o homem ali estava consciente. Passaram-se alguns segundos, ou minutos (Antônio não sabia precisar quanto tempo ficara naquela angústia). Então, Carlos levantou-se. E riu.
Não era uma risada de alegria. Não parecia em nada com alguém que ri quando presencia ou ouve algo engraçado. Era uma risada de loucura. O homem ria sem parar na frente de Antônio, que o olhava estupefato. Ele dobrava-se para trás após cada gargalhada e perto do fim, Antônio teve certeza, pôde-se ouvir um barulho estranho vindo da sua coluna, como se ela estivesse se quebrando.
- Você não acreditaria. Diria que estou louco. – retrucou o homem.
- Perdoe-me, amigo. Mas a forma como você está agindo. Parece realmente com um doido varrido. Mas me fale. O que aconteceu com você?
- Você não acreditaria. Diria que estou louco. – retrucou novamente.
Aquilo deixou Antônio preocupado. O homem falava desconexamente. Não era do feitio dele falar daquela forma, com o os olhos vazios e voltados para o nada. A voz mais rouca que o habitual e ao mesmo tempo esganiçada, como se houvesse alguma obstrução nas suas cordas vocais. Não parecia o mesmo Carlos com quem ele havia conversado há dois dias.
Dois dias? Realmente fazia dois dias que ninguém vira o Carlos. Ele normalmente era um homem que honrava seus compromissos. Entretanto, essa semana ele deixara seus pacientes esperando por horas e não aparecera. Dois dias sumido para voltar daquela forma? Havia algo errado. Antônio levou a mão o telefone sem fio do consultório para chamar alguém caso fosse necessário conter o amigo.
- Você não fará isso!
O seu pulso foi fortemente agarrado pela mão de Carlos, que o apertava como se quisesse quebra-lo. A outra mão agarrou o fone, retirando-o do gancho e arremessando-o do outro lado da sala. Com outro movimento, ele derrubou todos os papéis que Antônio estava examinando.
- Você vai me ouvir!
Antônio começava a sentir medo. Carlos agora parecia ter perdido as estribeiras e poderia atacá-lo a qualquer momento. Sem telefone para chamar por ajuda, ele começava a se preparar para o pior. Entretanto, a voz de Carlos apenas se acalmou e ele pôs a falar de forma desconexa.
- Você não acreditaria. Diria que estou louco.
“Se você não está louco, eu que estou”. Pensou Antônio. Aquilo realmente havia se transformado em um cenário perturbador. Frases desconexas intercaladas por episódios de agressividade. Os sintomas estavam ali, bastava agora dar o diagnóstico. E, com certeza, Carlos poderia tornar-se “colega” dos seus próprios pacientes.
- Diria que estou louco.
- Por que não me conta o que aconteceu? – resolve perguntar já cansado de ouvir aquilo.
- Fiquei imaginando quando você iria perguntar.
Para a surpresa de Antônio, o rosto de Carlos ficou com uma expressão séria e, ao mesmo tempo, serena. Não parecia mais o homem que estava ali há pouco tempo jorrando palavras desconexas pela boca como a água de uma torneira aberta. Não, ele parecia agora mais com o seu colega, um homem inteligente e centrado. A expressão do seu rosto havia mudado completamente.
Isso deixava Antônio assustado. Devido à sua experiência, ele já presenciara muitas vezes isso acontecer em diversas consultas. Não tanto ali naquela cidade, onde os problemas eram sempre os mesmos, mas na capital, onde o número de pessoas com distúrbios psiquiátricos era bem maior. Já viram muitas vezes um cidadão comum adentrar o consultório e, depois de alguns minutos de conversa, onde não foram feitas nada mais do que perguntas simples, esse mesmo homem tornar-se um troglodita. E, no geral, a paciência do homem antes do estopim era notável.
O que ele iria fazer agora? Gritar com um homem naquela situação ali do lado era muito perigoso. E ele também não tinha mais o telefone para chamar algum dos seguranças. E também havia algo a mais dentro dele que o deixava sem reação. Antônio não queria aceitar que aquilo estava acontecendo com o seu colega e, por que não, grande amigo. Não queria aceitar que ele estava louco.
“De certa forma, o mais correto será fazer o jogo dele. Na primeira oportunidade eu tento imobilizá-lo. Não sou tão velho para isso, posso fazer tranquilamente. Mas agora devo ouvi-lo. Sim. É o melhor a fazer. Esperar a melhor oportunidade. Sim.” Pensava Antônio. E ao mesmo tempo torcia para que seus 50 anos não o atrapalhassem agora. Que ainda tivesse força suficiente.
- Então, me diga o que quer falar, Carlos. Estou aqui para ouvi-lo.
- Não sei por onde começar. É tudo tão confuso. – o tom desconexo começava a voltar para a voz de Carlos, fato que fez o sinal de alerta ligar dentro da cabeça de Antônio. Talvez ele tivesse pouco tempo antes de a bomba estourar.
- Por que não começa por onde você lembra? Depois você vai juntando os pedaços...
- Não! – interrompeu Carlos. – Isso é muito importante para ser falado assim. Tenho que escolher a melhor forma. Não quero parecer um louco.
- Certo, como queira. – concordou Antônio.
- Então vamos fazer isso como manda o figurino.
- O que quer dizer? – perguntou Antônio.
- Oras. Você liga o gravador e eu deito no divã. Façamos uma consulta.
- Se assim você deseja. – concordou Antônio.
Ele, então, abriu a gaveta da escrivaninha e puxou lá de dentro um velho gravador de áudio digital. Ele usara, até alguns anos antes, um velho gravador k7, mas se rendera completamente ao “progresso”. Aquele era muito mais compacto, podendo passar o áudio diretamente para o computador ou para algum pen drive. Entretanto, ele ainda possuía uma gaveta abarrotada de fitas dentro de um armário na sua casa. “Para recordar os velhos tempos.” Era o que ele dizia.
Antônio aproveitou e pegou mais um cigarro de dentro do maço que estava na gaveta e levantou-se. Após alguns passos, ele chegou próximo ao divã, onde Carlos já estava deitado, olhando para ele. Esboçou um sorriso, que acabou transparecendo todo o seu esforço, e sentou na poltrona ao lado. Apertou o botão rec do gravador e o tempo, antes parado em 00:00, começou a contar. Ele ficou olhando um tempo para o gravador e, aproximadamente uns 5 segundos depois, ele olhou para Carlos.
- Pode começar.
- Bem, tudo começou há uns 2 dias atrás. Ele veio atrás de mim.
- Ele quem?
- O próprio demônio.
Antônio agora estava consciente de que não havia salvação para Carlos. Estava realmente louco. Acreditar em demônio? Isso pode parecer ter sentido para aquelas velhas beatas de igreja, mas para eles, dois médicos? Não tinham porque acreditar naquilo. Era apenas mais uma das estórias inventadas para manipular a mente da população. Crer em algo superior é um paradoxo. A única coisa superior é a imaginação humana, capaz de criar coisas sem sentido como essas. Mais superior é a imbecilidade de alguns, que acabam por se deixar levar por essas mentiras.
- Como assim? Que quer dizer com demônio? – perguntou Antônio.
Ele não fez questão de discordar. Sabia que isso era inútil com pessoas naquele estado. E até mesmo perigoso. Recordava-se ainda de quando dissera a um paciente que D. Pedro não estava atrás dele para sucedê-lo no trono imperial. Não existia mais o império e o próprio D. Pedro havia morrido há muito. O pobre acabou por atacá-lo com um extrator de grampos. Bradava “Infiel, você deve morrer em nome da coroa!” enquanto o fazia. Ele acabou saindo do consultório com alguns cortes no braço, mas nada e muito grave.
- Lúcifer, meu caro. Ele veio até mim. É difícil lembrar-se de tudo.
- Mas faça um esforço.
- Certo, mas peço que não me interrompa.
***
Eu estava em meu consultório, como sempre, olhando alguma matéria interessante no jornal. (Não consigo me lembrar do que era). Esperava o próximo paciente entrar, mas ele estava atrasado. Na verdade muito atrasado. Eu marquei com o senhor Andrade ás duas da tarde, mas já estavam faltando quinze minutos para as três. Eu estava morrendo de fome e queria ir para casa e aquele filho da puta (desculpe) não havia chegado. Eu tinha passado o dia inteiro sem comer e agora aquele imbecil me fazia esperar. Não, não era certo.
Quando eu estava começando a ajeitar meus papéis dentro da minha maleta, a Rosana avisou que ele chegou. Ele entrou, com a pior cara que já vi. Parecia realmente abatido, mas ao mesmo tempo, havia muito medo ali. Ele olhava constantemente para os lados e para trás. Era muito estranho. Notei que havia uma espécie de tique nervoso na sua sobrancelha. Na esquerda, eu acho. Não consigo lembrar direito.
“Eu vi o demônio doutor.”
Essa foi a única coisa que ele falou. Sinceramente, na hora eu tive vontade de rir. Quem acredita numa baboseira dessas? Eu pensei, mas olhando para o rosto dele, eu vi que ali não havia mentira. Pelo menos na expressão. Mas os malucos acreditam na próprias mentiras, não é?
Perguntei-lhe como havia acontecido, pois não se deve discordar de alguém nessa situação, pois podem acontecer tragédias. E nós somos acostumados a isso, não é? Nós devemos ouvi-los e tentar ajuda-los. Essa é a verdade.
Pois bem, ele não soube dizer. Falava palavras desconexas. Primeiro ele falou que a mãe dele apareceu na frente dele à noite e conversou com ele. Mas também disse que depois ela se transformou no próprio demônio e que ele não era aquilo que todos diziam. Ele não tinha chifres, nem rabo, nem nada. Na verdade, ele tinha uma aparência comum.
“Mas como você sabia que era o demônio?” - eu perguntei. ‘
“Ele disse.” – foi o que ele respondeu.
“Como assim?” – perguntei. Mas nesse momento eu já começara a perceber que, na verdade, ele passara por uma situação traumática, pois ele se recusava a comentar. Continuava respondendo com frases simples. Eu já formulava mil hipóteses na cabeça, imaginando que o tal demônio seria apenas uma forma de aceitação do problema. Você sabe que isso acontece muito, não é?
Pois bem, ele demorou um pouco a responder. Parecia estar recuperando as forças, ou a coragem, não sei. Mas depois ele me contou que o “homem” identificou-se como o Vindo da Luz e que viria buscar a sua alma. E ele disse que o nome Lúcifer significava Vindo da Luz, como um pastor o havia ensinado. Era o anjo que caíra, mas que antes fora chamado de Luz. Era o que ele dizia que havia aprendido.
Mas o mais estranho veio depois. Ele disse que ele havia entrado dentro dele. Que o havia possuído. Eu fiquei meio espantado nessa hora. A única coisa que pude fazer foi perguntar-lhe como havia acontecido. Ele relatou, com dificuldades, pois parecia não lembrar, ou não queria lembrar. Ele disse que o homem na sua frente se dissolveu e apareceu como uma espécie de luz.
Eu também fiquei muito intrigado com isso. “Como assim luz?” - perguntei. Ele não soube dizer exatamente. Falou algo a ver com um homem em forma de luz. Um homem que era um luz, sabe? Estranho. Eu não entendia nada do que ele falava. Ele me parecia muito idiota nessa hora, sabe? Mas não falei nada. Ele explicou o que viu e depois ficou calado.
Os olhos perderam o brilho, sabe? Ficou totalmente fora de foco. Eu chamei ele e puxei seu braço, mas ele não falava comigo. Sequer olhava. Era muito estranho e me deu um pouco de medo, confesso. Quando eu levantei e ia pegar o fone para chamar a enfermeira, ele mexeu-se e me chamou. Mas não era ele. Com certeza não era ele.
Eu era católico quando criança, mas depois que cresci e que estudei, percebi que não era muito sensato acreditar nessas coisas. Sabe o que eu pensava? Achava que minha mãe era muito idiota em acredita naquilo. Vivia falando que o demônio estava por ai, no mundo todo. E que ele queria levar todo para o Inferno. E que devíamos rezar para Jesus para que nossa alma fosse salva. Eu não acreditava. Pelo menos até o que eu vi. Aquilo me fez pensar que eu devia ter rezado mais.
O seu Andrade levantou-se da divã e falou que ele havia pedido para me ver. Eu perguntei quem e ele nada falou. Seu corpo se contorceu. Dava para ouvir suas juntas estalarem. Aquilo me deixou morrendo de medo. Depois uma luz começou a sair dos seus olhos. Mas não era uma luz comum. Queimava. Sim, queimava. Eu não conseguia mais olhar diretamente para ele. E a luz entrou em mim.
Eu estava tão estupefato que não pude divisar bem sua forma, sabe? Só posso dizer que tinha uma forma humana. Não era como uma pessoa, mas era humana. Sei que parece loucura e que você não deve estar entendendo nada. Sabe o que me lembrou na hora? A mesma descrição que o seu Andrade fez.
Sabe o que foi engraçado? É que o Andrade pareceu completamente normal depois disso. Falou que agora estava livre e que iria embora. Que iria embora para onde ninguém pudesse alcançá-lo. Onde o demônio não poderia encontrá-lo. E simplesmente saiu. Mas você sabe o que aconteceu depois. Portanto não preciso falar nada.
Eu fui para casa. Não consegui dormir a noite toda. Nem na outra. E não saia de casa. Eu estava com muito medo. Realmente muito medo. Eu sabia que era o demônio que tinha feito aquilo. Sabia que ele havia me possuído. Você não sabe o quanto que eu estava amedrontado.
O pior eram os pensamentos. Morte. Eu sonhava com todos morrendo. Sonhava com o Apocalipse. Eu realmente deveria ter rezado mais. Minha mãe estava certa. Agora ela está com Deus e eu com o demônio.
***
Antônio ouvia atentamente cada palavra que saia pela boca do “paciente”. Concordava com a cabeça quando necessário e anotava alguma coisa que achava importante no seu bloquinho de anotações. Foi ao seu computador algumas vezes, mas voltava rapidamente para ouvir a conversa. Prestava atenção, principalmente, na mimica facial do outro, tentando notar alguma coisa estranha. Tudo ia para o seu bloquinho. Quando Carlos terminou, já haviam umas 10 folhas rabiscadas.
Em apenas um único momento da conversa ele ficou um pouco assustado. A parte que ele cita que o seu Andrade tinha dito que iria para um lugar onde o demônio não podia alcança-lo. O Andrade havia se suicidado há dois dias. Exatamente na noite após a consulta. Aquilo era estranho.
“Não se perturbe com isso, Antônio. Há suicidas em todos os lugares. Você nunca sabe quando uma pessoa pode fazer isso. Além do mais, só o Carlos viu o Andrade por aqui.”
Realmente, não havia qualquer prova que o homem estivera ali. Antônio checou o computador da clínica e não havia qualquer registro de uma consulta dele esses dias. Havia uma, mas de uma semana antes e não dois dias. E ele lembrava que a Rosana tinha negado à polícia que ele estivera ali no dia do suicídio. A polícia tinha ido investigar os possíveis motivos do suicídio, pois Andrade passara mais tempo ali no último mês do que qualquer um. Mas não havia nenhuma consulta naquele dia. Com certeza não havia.
- O que me dava um certo consolo era que não seria somente eu que passaria por isso. Não. O demônio também queria mais pessoas.
- Como assim?
- Eu sei que é algo rude da minha parte, mas não quero sofrer sozinho.
- E quem seriam essas pessoas?
- Você é uma delas, por isso que vim aqui. E não deixei ninguém me ver.
“Como assim não deixou ninguém ver? Se foi a Rosana que me avisou que ele veio? Mas isso não é importante. Tenho que tomar cuidado agora. Ele está para explodir.”
Antônio correu pela sala e pegou o telefone sem fio e começou a discar o número da recepção. Entretanto, ele parou com o que viu e deixou o telefone cair.
Carlos havia se levantado e andava em sua direção. Seus olhos brilhavam. Parecia que o próprio sol havia entrado naquela sala, tal o calor que aquela luz emanava. Ao abrir a boca, a luz saia por ali também. Pouco tempo depois, ele já estava totalmente coberto pela luz. Parecia com uma lanterna ambulante. Foi um pensamento estranho, mas foi o que Antônio pensou na hora.
Ele caiu no chão. Mas a luz continuava ali e tinha uma forma humana. Era igual ao que Carlos descrevera. Mas tinha duas grandes asas. O demônio já fora um anjo realmente, por isso as asas. Agora Carlos entendia. O demônio viera busca-lo.
Antônio tentou correr, mas as suas pernas não o obedeciam. Só restou para ele a voz e a esperança de alguém ouvi-lo. Gritou, mas nenhum som saiu de dentro da sua boca. A luz aproximou-se dele, e ele podia ver um sorriso no meio daquela miniatura do sol. Ouviu uma voz que não pode entender, tão estranho era o dialeto que falava. Ele sentiu um calor emanar de seu corpo, imaginando que seria cozido vivo. Era quente demais. Quente demais para aguentar. Quente demais. Quente.
***
Ele acordou depois de algum tempo e sentia-se estranho. “Talvez tudo fosse um sonho. Nada disso aconteceu. Eu acabei dormindo de cansaço e sonhei com aquilo”. Entretanto a visão de Carlos tirou a esperança do seu rosto.
- Desculpe, amigo. Eu não podia me controlar. Eu vou embora antes que ele me encontre novamente.
Ele saiu correndo pela porta. Antônio ficou ali olhando para as mãos. Lágrimas as molhavam agora. Lembrou-se de algumas palavras que o velho padre italiano falava na missa quando ele era criança. “Deus, por que me abandonaste?”
Carlos foi encontrado morto no seu apartamento naquela noite. Não havia sinal de arrombamento e o corpo parecia totalmente intacto. A polícia disse que foi suicídio.
Gostei muito desse. Tema bem interessante e abre a possibilidade de se criar uma história bem legal partindo dessa introdução. Só me perdi ali no meio quando passou pra fala do Carlos mas depois me encontrei kkkkk.
ResponderExcluir