Ele não tinha mais medo de andar no escuro. Na verdade, acostumara-se com isso. Ali, no pequeno povoado que eles chamavam de Santa Tereza, não havia chegado energia elétrica. Esta, por sua vez, ainda era um luxo no Piauí, onde somente as cidades tinham iluminação. Nos interiores, como eram chamados esses pequenos povoados, a iluminação ainda era à base dos lampiões. Não havia postes nas ruas e os caminhos eram escuros.
O menino passara a tarde na casa dos avós, que ficava a uns 2 km da casa onde ele morava com o pai. A mãe, que em vida fora uma das mais belas moças da região, morrera ao parto e sequer ouvira o choro do filho. O garoto, portanto, cresceu com essa ausência que o pai tentava, embora inutilmente, suprir com a ajuda dos pais.
O caminho que ele percorria lhe era muito conhecido, pois andava por ali desde muito jovem. O pai gostava de leva-lo à casa dos avós e deixa-lo lá enquanto ele ia trabalhar na roça. A vida era muito sofrida, pois o dinheiro que ele conseguia ganhar com a venda da sua colheita mal dava para comprar a comida para eles se alimentarem. Roupas, tinha poucas, sendo que usava quase sempre a mesma, guardando as “novas” para situações especiais.
Ele estava absorto pensando nas dificuldades da sua vida, quando ouviu um pequeno ruído vindo de trás de um pequeno arbusto. Uma brisa gelada subiu por sua espinha, descrevendo um arco em sua coluna curvada pela escoliose. Cada pêlo do corpo do garoto eriçou-se em resposta. As pupilas dilataram-se e o suor gelado começou a escorrer pela sua face. O corpo preparava-lhe a resposta à fuga, mas a curiosidade o prendeu ali.
Ele virou-se na direção do barulho e, em passadas curtas e o mais leves que ele conseguia, seguiu para o local para averiguar a origem. Ao passar as mãos pelo arbusto, ele tremia amedrontado. Sua mente formava imagens que iam desde mãos puxando-o para dentro de uma armadilha até uma cobra preparando o bote para arrancar-lhe os dedos. Entretanto, para seu alivio, ele não viu nada ali. Acabou rindo de si mesmo. “Você está agindo como um bebê, Alex. Você já está moço e ainda está se molhando com qualquer barulho?”
Já recomposto do susto, ele olhou para dentro da mata que beirava a estrada que ele seguia e nada pôde ver. Dando ombros, ele virou-se e seguiu o seu caminho. Começava a lembrar-se da diversão daquela tarde, quando o avô lhe ensinara a usar um estilingue. Ele não conseguiu acertar nenhum pássaro, mas divertiu-se muito. Seu avô dizia que era melhor ele treinar logo em algo que se movimentasse do que em alvos parados, pois da segunda forma ele não iria aprender. O garoto duvidava disso e já pensava em pegar algumas pequenas latas de metal e fazer delas alvos para treinar a sua pontaria.
Ainda imaginando o treino da manhã, ele continuava o seu caminho quando ouviu novamente um ruído às suas costas. Ele virou-se novamente para olhar e o que viu quase o matou do coração. Totalmente amedrontado, ele começou a correr em direção de casa. Entretanto, o escuro era agora uma grade armadilha, pois ele não via as pedras no caminho. E foi em uma delas, que ele tropeçou e caiu, sentindo a pele rasgar-se em alguns tocos no chão. Ainda cego pela dor, ele sentiu mãos enroscarem-se nas suas pernas e puxá-lo.
Ele gritava, mas não havia mais ninguém ali para ouvi-lo.
***
Naquela noite, o filho chegara em casa gritando. Tremia e suava muito. Os olhos estavam vidrados e a respiração ofegante.
O pai, preocupado com os delírios da criança, resolveu passar a noite em claro, cuidando do mesmo. A pequena vela, colocada estrategicamente a um canto do quarto, era a única fonte de luz no meio do breu do pequeno quarto. A pequena janela, que costumava ficar aberta à noite para receber a refrescante brisa noturna, estava fechada e aferrolhada, pois o garoto morria de medo de ter sido seguido pelo “bicho” que ele dizia que o puxara.
Fernando não queria desconfiar do filho, mas achava que algum simples animal tivesse cruzado pelo caminho do mesmo e o derrubado. Inocentemente, o garoto teria acreditado que fora um fantasma ou um monstro, mas para o homem, já crescido e acostumado com aquilo tudo, acreditar em monstros era besteira. No fim, ele apenas fingira que acreditava no garoto e tentara tranquiliza-lo.
A noite aos poucos foi perdendo forças perante o nascer do sol e a sua sombra foi, lentamente, dissolvendo-se frente a força dos raios luminosos. O brilho rubro-dourado do alvorecer transformara o fundo preto no céu em uma bela paisagem digna de um quadro renascentista. A deusa Aurora levantava-se e subia aos céus para distribuir a sua beleza eterna.
O pai havia se rendido ao sono e encontrava-se debruçado na cadeira. O filho estava acordado, olhando fixamente para o mesmo. Parecia recuperado do susto e esperava a hora do pai acordar.
Ao abrir os olhos, Fernando deparou-se com o olhar fixo do garoto, assustando-se. O olhar do menino era estranho. Estava diferente daquele olhar meigo habitual e tinha uma faceta que era difícil de ser descrita pelo homem, como se fosse outra pessoa. Havia um sentimento de cobiça, ambição.
Mas o pai pouco ligou para o acontecido e a manhã transcorreu normalmente para os dois, entretanto somente após uma conversa, onde o pai tentara extrair mais coisas do garoto. O mesmo, apenas citava uma figura estranha, que ele não conseguia descrever e apenas chamava de coisa, bicho. E que esse teria sido quem ou o que havia tentado agarrá-lo.
Após o almoço, o homem decidiu levar o garoto à casa dos avós dele, onde ele passaria a tarde enquanto o pai trabalhava. Sequer chegou a comentar o ocorrido para com os seus pais, pois acreditava que iria deixar o garoto mais transtornado. Após receber a benção deles, Fernando subiu a serra para trabalhar. A tarde transcorreu normalmente, igual a todas as tardes anteriores. Era um serviço entediante e pouco compensador, mas a sua inapetência para com outros ofícios o obrigava a continuar ali, na roça.
No fim da tarde, quando o sol já ameaçava recolher-se, o homem voltou para buscar o filho. Entretanto, o que viu o deixou transtornado.
O seu pai jazia caído na sala de estar, totalmente ensanguentado e a mãe caída de bruços na cozinha, ainda segurando o pequeno terço de contas. Em ambos, havia um olhar de pavor na face. O menino chorava profundamente dentro de um dos quartos e, vendo o pai aproximar-se, correu em sua direção.
- Foi ele pai. O “bicho” que tentou me agarrar. Veio aqui e levou a vó com ele. O vô morreu tentando salvá-la.
As lágrimas já escorriam pelo rosto de Fernando, que abraçou o filho e gritou alto, amaldiçoando o assassino.
***
- Pai, venha comigo... Eu sei onde ele está.
Alex puxava com vigor o braço direito de Fernando, que não conseguia compreender o filho. Como o garoto sabia onde o assassino estava? Por que ele não dissera logo? Ele começou a sentir um pouco de raiva do garoto, pois se o mesmo não tivesse ficado tanto tempo calado, tudo poderia ter sido evitado, seus pais poderiam estar vivos. Entretanto, o menino o puxava com uma força quase sobre-humana, como uma determinação ardendo em seus olhos. Decidiu apenas segui-lo.
Aos poucos, eles avançavam pelos fundos da casa, penetrando através do pequeno milharal que mantinham no terreno anexo. Menos de cinco minutos de caminhada foram necessários para que eles atravessassem a pequena cerca de pedra que servia como divisa da sua pequena propriedade e ganhassem a mata.
Inicialmente, as árvores retorcidas e os cactos repletos de espinhos destacavam-se, dominando a paisagem. Era uma vegetação típica da região, a caatinga, cujas árvores são acostumadas ao calor e a falta de chuva. Entretanto, a medida que avançavam, a mata começava a ficar mais uniforme, com grandes árvores, como as mangueiras, substituindo os pequenos arbustos retorcidos.
A caminhada ficara difícil, pois o caminho era repleto de pedras solta e pequeno buraco escondidos sob as folhas secas que caíam no chão, tornando o terreno propício para torções. Havia também os galhos baixos, que pareciam esticar-se para atingir a cabeça daqueles que passassem por sob suas copas, mirando sempre ao espaço entre seus olhos.
Apesar das intempéries do caminho, o menino continuava a caminhar, traçando aquela marcha quase sobrenatural, pouco se importando com os obstáculos do terreno. O pai apenas seguia-o, forçado pelo braço que o puxava. Por vezes, ele observara que o garoto parecia apenas flutuar no terreno. Momentos estes que ele duvidava de sua própria sanidade. Entretanto, para Fernando, o menino parecia conseguir andar rápido demais ali, o que o deixava muito intrigado.
- Filho, como você descobriu onde “ele” está?
- Silêncio, pai! Estamos próximos.
Mas a voz que saia daquela boca não era a do menino. Fernando começava a duvidar cada vez mais da sua sanidade. Afinal, era o seu filho que estava ali. Talvez os acontecimentos o tivessem deixado assim. Perder os pais de uma maneira tão brusca devia tê-lo afetado. Era a única explicação. E ele tentava convencer-se disso, mas mesmo assim, um frio começara a subir-lhe a espinha, fazendo cada pelo do seu corpo eriçar-se.
Ele tentou soltar a mão, mas percebeu que não tinha forças suficientes. Intrigado, ele forçou novamente e nada. Com a outra mão, apertou o braço do garoto, tentando colocar mais força ainda para desvencilhar-se dele, mas todas as tentativas eram em vão. O medo começou a dominá-lo e a certeza de que aquele (ou aquilo) não era seu filho crescia dentro da sua mente.
Foi quando algo terrível aconteceu. Percebendo as tentativas de fuga do pai, o menino voltou-se para ele. Sua cabeça apenas movia-se no eixo formado pelo pescoço enquanto o corpo continuava naquela marcha sobrenatural de antes. Fernando podia ouvir o momento que cada osso do pescoço se quebrava emitindo altos estalidos. Por fim, ficaram face a face. E a marcha seguia.
- Calma, papai. Estamos chegando.
Ele apenas pôde abrir a boca. O suor descia-lhe por sua face, onde uma expressão de mais puro terror estava estampada. Ele olhava atônito para o filho, sem entender o que estava acontecendo. Aquilo não parecia ser real. Mais parecia alguma cena de um ou outro filme trash.
Não era real. Não podia ser real.
O menino apenas continuava o seu caminho, levando o pai consigo naquela marcha contínua e impassível. O homem agora já não impunha nenhuma resistência. Ele parecia acabado. Queria seu filho de volta. Queria sua vida de volta. Estava seguro que estava muito longe disso e chorava, com grossas lágrimas escorrendo pela face.
Até que o menino parou.
O homem pôde sentir a mão que o puxava até agora com tanta firmeza fraquejar. Ele agora estava livre, mas não conseguia fugir. Suas pernas simplesmente não o obedeciam. E havia também a curiosidade, que o acorrentava fortemente aquele local. Ele queria fugir dali, mas, no fundo, também desejava ficar.
Ele estava parado em uma clareira que parecia ter sido aberta pelo homem há muito tempo. Em sua frente, havia uma gruta. Entretanto, ela tinha formas tão perfeitamente harmônicas que parecia obra do homem. Ele imaginava há quanto tempo ela havia sido aberta, talvez décadas, séculos. Cerca de uma dúzia de morcegos saiu voando de dentro da escuridão quando o menino fez menção de entrar. Alguns passaram muito perto da cabeça de Fernando, que abaixou-se, levando-o a perceber que ele já recuperara o controle sobre si mesmo, que poderia fugir.
- Animais lindos os morcegos, não é, papai? - Fernando nada pôde responder. Frente ao silêncio do homem, o garoto continuou. - Por que está calado? Acaso está com medo? Vamos, me siga. - As últimas palavras foram ditas enquanto o menino se virava e penetrava dentro da pequena entrada da gruta.
Frente à última ordem, as pernas de Fernando simplesmente se moveram sozinhas. Elas o levavam em direção à gruta, no encalço do garoto. Aos poucos, a escuridão foi envolvendo-o, deixando-o no mais completo abismo, onde ele sequer conseguia enxergar a um palmo de distancia dos olhos. Entretanto, ele andava sem bater ou tropeçar em nada. Algumas vezes, ele sentiu animais rastejando sobre seus pés, alguns rapidamente, outros lentamente.
Ele andou menos de cinco minutos no escuro, quando pôde divisar uma luz alguns metros adiante. A cada passo, a intensidade do brilho aumentava, até que lhe mostrou uma entrada para o que parecia ser uma sala dentro da caverna.
Bem no centro, jazia o corpo inerte do filho.
- Você deve estar um pouco confuso, papai. – a voz agora saia em um tom mais ensandecido que o de antes, que beirava quase à loucura. - Mas esse é o preço que se paga pelo esquecimento.
Fernando ainda estava estático. Não tinha o controle dos seus movimentos e apenas podia ouvir o que o demônio falava. Sim, demônio, pois ele estava certo que era isso que aquilo era. Seu filho estava ali morto no chão e ele seria o próximo. Se juntaria a ele na morte, onde seus pais viriam abraça-lo, pois para ele não havia mais esperança.
- Por séculos eu fui adorado. Eu dava tudo a vocês. Plantações, caça. E exigia o que? Só algumas míseras almas. E agora vocês me renegam. Não foi algo muito inteligente. – falava em um tom quase insano, ao mesmo tempo demonstrando ira e ironia. - Mas eu preciso me alimentar. E agora tive que caçar. Por sorte vocês humanos são muito burros. Sete almas. Um bom número, sabe. E eu devorei todas. Não, mentira. Foram seis. A sétima será a sua.
As luzes se apagaram e um grito ecoou de dentro da escuridão.
Provas definitivamente não me deixam pensar... O texto acabou não ficando tão bom quanto eu queria, mas espero que esteja ao agrado.
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