Era uma bela manhã. O sol levantara-se ao leste, como fazia todos os dias, e iniciara sua caminhada rumo ao oeste, onde ele descansaria (ou iluminaria a outra parte do mundo). A iluminação matutina era bonita, com o tom vermelho-dourado dominando o céu. Mas isso não era de importância para o velho que regava as samambaias.
Ele não era nem tão velho, podendo ter entre 40 e 50 anos, pois ninguém se lembrava da sua data de nascimento, a não ser ele que nunca a contava a ninguém. As rugas do rosto, juntamente com os cabelos brancos, já ralos, contribuíam para um aspecto de mais idade.Regar as samambaias era um hábito que cultivava há mais de 10 anos, talvez 20, se ele fosse capaz de lembrar qual fora a sua primeira. Tornara-se quase tão sagrado quanto rezar, hábito que deixara há exatos 15 anos, como lembrava bem, quando “o mundo se revelara a ele”, como gostava de dizer. Não era ateu, mas tampouco cristão, muçulmano ou budista. Acreditava no ser supremo, mas não um velho barbudo que adorava crianças.
Mas as samambaias eram mais importantes para ele agora.
Ele levantava-se cedo somente para regá-las. Era algo que gostava de fazer. Não apenas uma mania, mas também um meio de esquecer-se do mundo e relaxar. Ali eram só ele e as samambaias. Não raro, alguém passava por ali cedo da manhã e ouvia seus monólogos. Na realidade, ele conversava com as plantas, contando sobre seu dia e também algumas de suas teorias. Ele tinha várias delas.
Hoje ele conversava sobre os últimos dias em Santa Tereza.
- Hoje o prefeito vai inaugurar as obras na nova praça. Mais uma obra sem necessidade. Pra falar a verdade, não vi muita diferença. Somente uns bancos a mais e umas plantas a menos. Aposto que foi apenas uma forma de desviar o dinheiro. Ele, com certeza, não tem o meu voto. Não mesmo.
E continuava nessa conversa, falando sem esperar resposta. Vez por outra parava para colocar mais água no regador.
Terminado o que tinha que fazer, ele guardou as coisas numa pequena caixa que trazia consigo, à moda de uma caixa de ferramentas, só que de papelão. Deu uma última olhada nas plantas, verificando se estava tudo certo. Disse um “bom dia” às plantas e entrou na casa.
As plantas ficavam em um pequeno quintal nos fundos da casa, separado do “mundo externo”, como ele dizia, por um muro alto, com cacos de vidro colocados estrategicamente para impedir a entrada de quaisquer intrusos, desde gatos até ladrões. Ele descobriu que não adiantava muito para gatos, mas pelo menos ainda não havia sido assaltado.
A porta dos fundos dava para um pequeno corredor que dava para a cozinha. À esquerda ficava o quarto de visitas, quase nunca usado. Na verdade, não se lembrava da última vez que fora visitado. O único filho havia se mudado para o Sudeste e nunca voltara. Nos primeiros anos vinham as cartas que foram rareando até sumirem uns quatro anos atrás.
À direita ficava o único banheiro da casa. Há muito ele pensava em construir um dentro do seu quarto, mas o dinheiro, proveniente somente da aposentadoria precoce por invalidez por causa dos problemas lombares, era muito curto. Então, ele sempre adiava para o próximo ano.
Ele atravessou a cozinha e seguiu para a sala, que era simples. Continha apenas uma televisão de 14 polegadas, além de uma mesa de centro onde ficavam algumas revistas. Algumas poucas cadeiras, duas no total, completavam a decoração simples. Se viesse mais de uma pessoa, ele precisaria ir à cozinha e pegar uma das cadeiras da mesa que lá havia.
Havia também uma grande bíblia aberta em cima da mesa de centro. Era uma boa leitura, com bons ensinamentos, pena que ninguém a usava de maneira correta. Ele pensava em como ele, não sendo religioso, tirava mais proveito daquele livro que os fanáticos que gritavam aos quatro ventos que o fim estava próximo e que Deus os jogaria em um mar de fogo caso não se convertessem.
Havia também um panfleto de uma igreja protestante, que ele usava como marca-página, colocado delicadamente dobrado marcando alguma passagem interessante. Pegou-o e deu um sorriso.
Sempre que via o panfleto, ele lembrava-se bem da visita de um jovem bem vestido, com um terno risca de giz, de cor azul marinho, usado por cima de uma camisa branca lisa, com uma gravata preta presa por uma presilha dourada. Ele realmente notara isso e se lembrava até hoje das roupas do rapaz, que ele achara interessante. Ele trazia consigo um exemplar da bíblia e um panfleto na outra mão, onde havia um texto que discorria sobre o fim dos tempos.
O que mais impressionava era a eloquência do rapaz ao defender que Jesus estava voltando para reclamar os seus. Isso quase o comoveu. Perguntou-lhe se por acaso ele viria em uma nave, ao que o rapaz, não sem antes arregalar os olhos de puro espanto, responder:
- O senhor sim que deve ter vindo em uma nave, para falar tamanha blasfêmia.
Fora algo realmente engraçado, principalmente pelo fato de o garoto não saber o que falar depois da sua resposta, seguida de um sorriso.
- Claro que vim. Todos nós viemos.
O rapaz definitivamente devia ter achado que perdia seu tempo com algum louco e saiu (sem de despedir) praguejando “velho maluco”. Aquilo divertiu o homem. Leu o panfleto, que achou um tanto quanto idiota, mas o guardou, para poder sempre relembrar do acontecido.
Colocando o panfleto novamente no lugar, ele foi até a cozinha da casa, onde se serviu de um copo de leite que havia fervido antes de regar as samambaias. A cozinha era um cômodo pequeno, que tinha somente o espaço suficiente para a pequena mesa circular de quatro lugares, o fogão e a geladeira. À esquerda, a um canto, ficava um pequeno quarto que servia de despensa, mas também como quarto de despejo, onde ele misturava as compras com algumas “quinquilharias”, como gostava de chama-las.
O relógio marcava 7:15, fato que deixou-o preocupado, pois tinha atrasado o remédio para a pressão. Pegou-o em um pequeno pote em cima da geladeira, onde havia também alguns anti-inflamatórios (usados para melhorar a artrite que o incomodava tanto). Colocou o comprimido na boca e engoliu-o com o leite. Um pequeno pão, meio endurecido, completou o seu desjejum e ele foi sentar-se em uma cadeira de macarrão na sala. Queria ler um pouco.
Pegou um exemplar da UFO e começou a folheá-lo.
...
Ding dong
“Quem será a essa hora?” – pensou.
Ele levantou-se, colocando a mão às costas, sentindo aquela dor antiga. Seguiu em direção à pequena prateleira onde guardava as chaves. Escolheu a correta dentre as do molho e abriu a porta, curioso para saber quem tocava.
Ele deu de cara com um homem. Vestia uma camisa branca sem adornos, coberta por um terno preto. Um chapéu, também preto, equilibrava-se delicadamente em sua cabeça. Os tons escuros das roupas contrastavam com a sua face pálida tal qual uma folha de papel. O rosto esquálido dava a impressão que o homem não se alimentava há algum tempo.
- Bom dia, seu Carlos – disse com um sorriso, retirando o chapéu em uma mesura. Carlos pôde perceber que ele não tinha mais nenhum fio de cabelo.
- Amigo, já vou avisando, se quiser esmolas eu não tenho nada – disse. – Além do mais, como sabe meu nome?
- Sei tudo sobre você. Tampouco necessito de sua ajuda. Apenas gostaria de uma conversa. – respondeu o homem com um sorriso. – Poderíamos conversar um pouco? – indagou indicando a entrada da casa. – Garanto-lhe que é um assunto de seu interesse.
Algo naquele homem prendia a atenção do velho, que acabou concordando em conversar. Com um gesto indicou que o outro poderia entrar na casa.
Ao ver a Bíblia aberta em cima da mesinha, o homem sorriu e pegou-a nos braços, folheando-a. Suspirava a cada página que passava. Carlos afastou um pensamento que veio à sua mente ao ver aquela cena, pois lhe parecera ridículo. Na verdade, impossível. Não havia a possibilidade de o homem estar lendo tão rápido assim. “Ninguém pode fazer isso” – e ria de si mesmo por causa da tolice que imaginara.
- Os homens não sabem dar valor a este livro. – olhava para Carlos agora, ainda mantendo o sorriso de caninos proeminentes no rosto. – Tudo que eles precisam saber está aqui, mas mesmo assim insistem em manterem-se cegos.
- Acaso o senhor é mais um daqueles protestantes? Por que se for...
- Não se preocupe – interrompeu o homem. – Não vim aqui para lhe converter. Apenas fiz uma constatação. Veja. Esta é uma das minhas passagens favoritas.
Ele apontava para o livro e corria o dedo pela página enquanto lia os versículos. Por acaso, era uma passagem conhecida por Carlos.
“Tudo tem a sua ocasião própria, e há tempo para todo propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar; tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de abster-se de abraçar; tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora; tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.”
- Todos têm sua hora e seu dia, meu amigo. – murmurou o homem após ler. – Porém alguns sempre tentam fugir do seu tempo e aquele que o faz o perde. O tempo é algo precioso, eterno, porém finito ao homem. Deve-se aproveitar bem seu tempo.
Carlos ponderava as palavras do homem de preto, como ele o imaginava, já que não sabia seu nome, tampouco tinha vontade de saber. Era um estranho dentro da sua casa. Um estranho que por um acaso sabia quem ele era. Não, ele apenas dizia que sabia. “Mas ele não sabia seu nome?” – perguntou-lhe alguma voz dentro da sua mente.
- Não se preocupe com tolices, meu amigo Carlos. – disse-lhe o homem de preto como se estivesse lendo seus pensamentos. – Não é mais tempo de preocupações.
- Não entendi o que disse. – Carlos agora tinha certo receio em relação ao homem. Não sabia por que, mas não lhe agradava a companhia dele.
- Não importa, meu amigo. Não é mais tempo de entender. – retrucou-lhe o homem, agora com um sorriso no rosto. Um sorriso que não lhe agradava.
- Olha aqui, “meu amigo”. Você entra na minha casa dizendo que tem algo importante a me dizer, mas não falou nada ainda. Então sugiro que comece logo a dizer a que veio. Comece pelo seu nome, que não sei.
O homem do terno preto abriu ainda mais o sorriso, deixando os caninos proeminentes à mostra. Os dentes eram tão alvos quanto a face, parecendo serem impecavelmente escovados pelo menos umas cinco vezes ao dia. “Que tolices eu estou pensando, meu Deus, só pode ser stress.”
- Desculpe-me ser rude, meu nome é – uma pausa. – John. – E estendeu a mão. Ao toque, Carlos sentiu-se extremamente leve. Toda a preocupação pareceu sumir-lhe da cabeça.
- Claro John. – o tom agora era mais calmo, parecia que o homem o havia enfeitiçado. – Desculpe a minha rudeza também.
- Sem problemas. – retrucou o homem com o mesmo sorriso, que agora parecia totalmente encantador. - Então vamos resolver nossos negócios que ainda preciso fazer algumas visitas hoje.
- Claro, sente-se. – apontou a cadeira em que estava sentado e ele mesmo sentou-se em um banco de madeira. – Qual é esse assunto tão importante que você tem para mim?
O homem sentou-se na cadeira e puxou algo de dentro do paletó. Parecia uma ampulheta. Olhou-o e um riso formou-se em seus lábios. Um frio percorreu a espinha de Carlos ao ver aqueles dentes sinistros. Colocou-a suavemente na mesa de centro, de forma a ficar bem visível aos dois.
O objeto não media mais que dez centímetros, no máximo quinze, e tinha uma areia negra que escorria da sua metade superior para a inferior como um finíssimo filete de água. A maior parte da areia já havia descido. De fato, pouco restara na sua parte superior, não mais que uma simples pitada.
- Esse é um objeto poderoso. – começou o homem de preto. – Nem mesmo o melhor dos relógios suíços pode ser tão preciso quanto ele. – e riu do que disse. – Ela não está programada para marcar horas, ou dias, ou anos. Ela marca apenas uma unidade de tempo, mas de certa forma todas elas ao mesmo tempo. Ela marca a duração de uma vida. No caso, da sua.
Os olhos de Carlos arregalaram-se. O medo percorreu seu corpo, agarrando-o firmemente ao seu lugar. Impossibilitado de se mexer, ele apenas viu o homem puxar algo de dentro do terno. Parecia uma foice, só que possuía um brilho sobrenatural. O objeto atingiu-o em cheio, mas sem ferir seu corpo. Nenhuma gota de sangue foi derramada ali.
Sorrindo, o homem pegou-lhe pelos cabelos e arrastou-lhe em direção às samambaias. Durante o caminho ele teve de fazer duas pausas, pois os fios grisalhos já fragilizados pela idade teimavam em sair de suas raízes. Quando conseguiu terminar seu serviço, ele encheu o regador com um pouco de água e molhou as plantas.
- Você sempre quis morrer aqui, meu velho. – e desatou a rir.
Olhando o relógio, ele dirigiu-se à porta da frente e saiu para a rua, sem ao menos dar-se ao trabalho de fechá-la. Na calçada, um garoto de bicicleta desviou-se dele, entretanto seus olhos não pareciam encontra-lo. De fato, ninguém mais o viu ali além de Carlos. Na cidade vizinha duas pessoas poderiam dar crédito a qualquer coisa que ele falasse sobre o homem de preto, mas elas também estavam mortas agora, assim como ele.
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ResponderExcluirDepois de Supernatural, não sei por que, teimo em imaginar o carinha parecido com o cavaleiro do Pipocalipse.
É interessante notar como um conteúdo aparentemente tão despretensioso [foram o que, algumas horas?] traz embutidos em si sentimentos e sensações tão intensos. Gostei muito. ;O
Ele se baseia num dos meus personagens favoritos, e não a morte do supernatural. Obrigado pelos comentários e que bom que gostarem.
ResponderExcluirImaginei. Pela descrição, não pareceria mesmo. Mas o pipocalíptico é tão marcante. xD
ResponderExcluirMassa. Não assito muito supernatural, mas gostei da atuação da morte. Sem direito de defesa pro carlos hehehe. Muito bom o conto xD
ResponderExcluirFiz uma visita
ResponderExcluirEspero que possa me retribuir
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